terça-feira, 25 de setembro de 2018

Sobre APP e escola: o caso do aterro do igarapé da Cachoeira Grande e a Escola Municipal Prof. Waldir Garcia.

Nestes dias me lembrei do poema A escola, de autoria desconhecida, mas atribuída coerentemente a Paulo Freire que, certa feita, realizou a sua leitura, vinculando-o para sempre ao seu pensamento pedagógico. O poema apresenta uma imagem magnífica sobre o que significa a escola, considerando a sua essência humana, ou seja, aquilo que a constitui: “não se trata só de prédios, salas, quadros... escola é, sobretudo, gente /gente que trabalha, gente que estuda,/ que se alegra, se conhece e se estima /Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar,/ é também criar laços de amizade,/é criar ambiente de camaradagem,/é conviver, é se ‘amarrar nela’!”.

A lembrança não me veio por acaso, uma vez que no último dia 24 de setembro se deu a audiência pública convocada pelo Ministério Público do Amazonas – MPE para discutir os impactos ambientais (mas não apenas!) das obras de aterro da margem do igarapé da Cachoeira Grande, no bairro de São Geraldo, Zona Centro-Sul da cidade de Manaus. As obras estão sendo executadas pela Secretaria de Estado de Infraestrutura (SEINFRA), integradas ao Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (PROSAMIM), “herança” do governo de Eduardo Braga (MDB).

Convite da audiência pública convocada pelo MPE/AM.
Então você pode me perguntar: o que uma coisa tem a ver com outra? Como uma obra de aterro da margem de um igarapé pode se relacionar com a escola? Poderia começar dizendo que é porque os igarapés são classificados como Área de Preservação Permanente (APP) e que as escolas também poderiam ser um tipo de “APP”, só que de natureza social e cultural. Mas esclareço que não se trata apenas de buscar aproximações por analogia entre uma coisa e outra, embora não seja uma ideia fora de lugar. Segundo a Lei 12.727, de 17 de outubro de 2012, igarapés são áreas protegidas, uma vez que é necessário preservar os recursos hídricos, bem como a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, a fauna e a flora, o solo e o bem-estar humano. Já a escola é o lugar onde isso pode, de algum modo, ser tornar tema de estudo. Parece lógico pensar nesta relação, não? Afinal, isso tudo tem a ver com a nossa necessidade e direito de gozar de um ambiente equilibrado e de compreender a necessidade de uma vida digna para todos.

Assim, parece justo dizer que escolas também deveriam compor áreas “socialmente preservadas”, uma vez que é nesse espaço idealmente “separado” do tempo da produção, onde se realiza o trabalho especializado e institucionalizado de se educar gente (sim, gente!), como bem sabemos e como o poema demonstra de forma inequívoca: a escola, para além das paredes, salas, quadros, pátio, muros, quadra, biblioteca – todos esses espaços de absoluta necessidade e importância – é um espaçotempo constituído essencialmente por gente, seus sonhos e vicissitudes. Sim, escolas são feitas ou foram feitas por gente, a vida é sua matéria prima! Portanto, todo cuidado e atenção são necessários.

Ocorre que na rua Pico das Águas, localizada no bairro de São Geraldo, está fincada há 32 anos a Escola Municipal Prof. Waldir Garcia. Na área, a poucos metros dessa escola, passa o igarapé da Cachoeira Grande, curso d’água que compõe a bacia do São Raimundo, afluente do Rio Negro. Infelizmente, não me lembro de ter aprendido sobre essas minúcias na escola, olha que eu nutria grande interesse pelas aulas de Geografia durante o meu tempo de Ensino Fundamental e tive excelentes professores, posso assegurar. Mesmo tendo cursado parte da minha formação escolar numa instituição confessional situada (advinha onde?) no bairro de São Geraldo, “confesso” que nunca me foi dado a conhecer que eu estava muito perto de importantes igarapés da cidade de Manaus. Curiosamente, as circunstâncias atuais me levaram a atinar para esses corpos d’água que compõe o nosso cenário urbano. Os igarapés, é indispensável dizer, são importantes patrimônios naturais e a partir deles (ou à custa deles) a cidade foi se expandindo. Grande parte dos igarapés de Manaus teve suas margens ocupadas ao longo de nossa história de urbanização por populações empobrecidas e que, literalmente, foram colocadas à margem por sucessivos modelos modernizadores de desenvolvimento econômico e social, que encharcaram os sonhos de riqueza de muitos, mas que permitiram a prosperidade para muito poucos. Inicialmente, com o período de exploração da borracha, no século XIX, e na segunda metade do século XX, com o processo de industrialização da cidade, com o modelo Zona Franca de Manaus. Durante esses dois períodos, um grande contingente de pessoas migrou para estas paragens em busca de melhores condições de vida. Mas, os sonhos de muitos se desmancharam nas águas, onde moradias precárias foram erguidas à beira dos igarapés, o que não os impediu de encontrar maneiras de lidar com as adversidades e tecer nos fios d’água suas histórias e seus modos de vida.

Imediações do igarapé da Cachoeira Grande
 em novembro de 2011. Fonte: Google Erth 2018.
À margem do igarapé da Cachoeira Grande, por exemplo, moravam, até fins de 2011, cerca de duas mil famílias em casebres e palafitas. Com o início das intervenções do PROSAMIM nessa área, as famílias que ali residiam, a maioria há muitas décadas, foram removidas para outras localidades com a promessa de que seriam reassentadas em condomínios populares a serem ali construídos nos próximos dois anos, a partir daquela data. Vale dizer que a promessa não contemplava a todos, por isso era possível “optar” por indenizações ou, no caso, pelo benefício do aluguel social destinado àqueles que foram levados a crer que retornariam ao seu local de moradia, mas que deveriam aguardar provisoriamente em casas alugadas.

Imediações do igarapé da Cachoeira Grande e Escola Municipal Prof. Waldir Garcia
em agosto de 2016. Fonte: Google Erth 2018.
A Escola Municipal Prof. Waldir Garcia esteve ladeada por essas famílias ribeirinhas, e também pelas famílias “do asfalto”, em São Geraldo, atendendo boa parte da demanda de vagas para os anos iniciais daquela comunidade. Com a remoção das famílias da margem do igarapé da Cachoeira Grande, ao longo de quase cinco anos, a evasão forçada pegou a “Waldir Garcia” em cheio. O processo de esvaziamento da comunidade teve rebatimento direto na vida da escola. Ao longo desse período a perda do alunado chegou a 60% da matrícula (entre 2012 e 2016). Em termos absolutos, foram desvinculadas mais de quatrocentas crianças daquele espaço educativo. Isso não são apenas números! A escola foi profundamente afetada, ameaçada diuturnamente de encerramento de suas atividades. Ora, uma escola com décadas de história começava a ter a sua existência afetada por uma grande obra cujo responsável direto, no caso o Governo do estado, parece ter pouco se importado com o previsível impacto. E pelo que consta, parece que o poder público municipal interveio palidamente diante da situação. Isto por si já configura um caso de violência e injustiça social.

Fachada atual da escola. Foto: Francisco Lima

Importa dizer que essa escola não sucumbiu e quis o “destino” (apenas modo de dizer. Penso que o destino são as pessoas e o seu agir na realidade) que cada vez mais afirmasse a sua importância naquela localidade, atendendo os filhos dos remanescentes daquela área e atraindo famílias de outras localidades, uma vez que democratizou o seu espaçotempo e hoje se tornou uma importante referência de escola de educação integral. A “Waldir Garcia” se notabiliza pelo acolhimento da diversidade e hoje conta expressivamente com a presença de crianças haitianas e venezuelanas, resultante do fluxo migratório ocorrido nos últimos anos. A escola, ao fim e ao cabo, precisou se reinventar de muitos modos, revendo e reconstituindo a sua identidade e seu projeto pedagógico. Manteve-se com muito esforço de pé e com suas portas abertas.

Aterro da margem do igarapé da Cachoeira Grande em set/2018.
Foto: Francisco Lima
Entretanto, a atual retomada das obras do igarapé da Cachoeira Grande tem vindo a reeditar os medos e as incertezas da escola, pois, após o ano de 2012, as intervenções entraram em modo de “hibernação” e o projeto social e ambiental do PROSAMIM andou meio esquecido. Agora, com as máquinas a pleno e o aterro chegando a 1,5 m do nível da escola, as perspectivas são preocupantes. No que será que vai dar esta obra? Que raio de engenharia (social e ambiental) é essa? E quando começar o período das chuvas, para onde fluirão as águas? Quanta poeira, ruído e trepidação, será que esqueceram que a escola também é gente? Querem, por fim, “aterrar” também a escola?

As ameaças não explicitadas oficialmente tomam a forma e a cor da poeira avermelhada do barro que invadiu nos últimos três meses os poros da parede-gente que compõe a escola. As informações se esvanecem feito pó. Como de costume dentro desta lógica autoritária, invisibilizam as pessoas e a existência do que quer que esteja no caminho: escola ou igarapé, patrimônios de importância para todo o conjunto da sociedade.

Na audiência pública, muitas vozes puderam ser, enfim, ouvidas e elas diziam aos agentes públicos que é preciso discutir com a população os rumos da obra; que, com todas as aflições, a comunidade daquele local continua viva e lutando por suas moradias, por dignidade e pelo direito de participação cidadã; que a escola está de pé e assim quer ser mantida, enfatizando a necessidade de condições de salubridade para quem nela é a razão de existir: gente! Por fim, o recado da comunidade escolar é claro: “Tirem as mãos da nossa escola!”.

Ceane Simões